Noite. Escuro. Meus pés caminharam até um breve barranco, meu corpo resolveu acompanhar-los. Era uma grama mal cuidada, um pouco bagunçada, assim como meus cabelos. Era um campo de futebol em 45 graus, que se estendia até o céu, ou pelo menos tentava. Ali estava uma criança, apenas de bermuda, enquanto eu estava de calça, sapato, blusa e casaco. A criança era marrom de sujeira, pobre, humilde e eu simplesmente soube que ali nas suas pernas e braços magros de fome caminhavam as riquezas do mundo.
Ele tinha uma bola, azul desbotado, de plástico. Me aproximei, queria jogar com ele, queria ser importante para ele, queria ser um herói, o bom samaritano. Ele deixou com que eu me aproximasse, eu estava na parte de cima do barranco, apesar de ter partido de baixo. Tentei pegar a bola com meus pés, meus sapatos estavam brevemente molhados por alguma espécie de orvalho que existiu naquela grama, naquela noite. Quando meus pés tocaram a bola, as leis da gravidade surtiram efeito nela, ela começou a descer o barranco. Tentei segurá-la, estava sentado no chão, minhas mãos tocavam a grama. Havia chovido.
No desespero de tentar recuperar a bola, eu e o menino nos chocamos. Ele me deu seu rosto, eu lhe dei meu pé direito. Foi com uma espécie de força carinhosa que nosso choque físico ocorreu. Me senti mal, fui falar com ele e sabia -ele falava espanhol e eu não. Perguntei como que em um balbuceio: duele? Ele me levantou seu rosto, marcado por lágrimas e com catarro escorrendo de seu nariz. Catarro no lugar de sangue, água e resíduos no lugar da dor. Me deparei com o rosto do pequeno garoto, devia ter seus 10 anos, mas seu olhar o traía - aqueles olhos haviam presenciado a criação. Seu olhar de infância se misturava com o de um ancião e me diziam que não havia mal algum ali.
A bola correu sozinha em nossa direção, estava tudo certo agora. Peguei com o meu pé, ainda estava no chão, virei meu corpo e fiz um gol. Ri, tinha feito uma travessura. Uma menino não riu, mas ele estava feliz com meu gol, podia sentir. A bola resolveu que queria fugir, fugir pela noite e pelas calçadas amarelas quadriculadas de tijolinhos da noite. Fui buscá-la, estava curioso com seu destino. O menino me seguiu. Ele estava ali para me buscar, caso a bola me enganasse e eu me perdesse. Fomos longe, mas alcançamos a bola, sim, capturamos ela. Eu pensei com meus botões, vou arremassar a bola e ele verá o quão longe eu posso arremessar essa bola. Queria vê-lo correr, queria vê-lo sorrir, queria vê-lo feliz. Aquilo era a vida e nada mais poderia ser.
Eu o disse, corra de volta para o campo, vou jogar a bola. Eu sabia que apesar da distância eu jogaria a bola até o meio do campo inclinado, no exato centro do barranco. O menino me olhou com astúcia e resolveu que o que deveria fazer era uma travessura, a sua travessura. Subiu uma árvore, uma árvore alta que subia mais alto que a maior torre do castelo. Ali no alto, ele encontrou uma luneta, bela, de prata com detalhes em madeira. Entendi, ele queria me ver jogar a bola e vê-la rasgando o céu, como uma estrela cadente. Ele queria o seu desejo que lhe era de direito.
E, apesar da altura da árvore e dos meus pés nos chão, ele me olhou, com um sorriso taciturno e impregnado de ousadia. E naquele momento, nos olhamos no mesmo nível, como iguais, balanceados, equivalentes. Éramos cúmplices do mesmo destino, eramos os palhaços do mesmo sorriso - éramos os donos, eu do destino da bola e ele do destino da luneta.
Arremessei a bola e tudo que restou foi a escuridão eterna dos sonhos.
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