domingo, 27 de abril de 2014

O Rochedo e o Mar

Estava ali, o Rochedo. Sua firmeza tempestuosa era inabalável perante o Mar. O céu turvo marcava a batalha, em seu campo não havia descanso. Arwen estava lá, suntuosa e magnífica. Que mulher, que pecado. Não havia nada no mundo que não a quisesse, era simplesmente o puro olhar do desejo. Seu corpo branco se marcava contra a rocha cinza, enquanto ela suavemente olhava para o horizonte, cabelo revoando aos ventos. Entre as potências, entre o mar e a rocha, ela era a única vitória possível. Perto do seu rosto impetuoso, seu nariz fino e seus lábios macios, só encontrava-se as marcas do divino, como aquela de nascença no alto de sua perna direita, por trás.

Irresistível.

Contudo, ele era um rapaz acabrunhado, não sabia que direção seguir. Ele estava lá, ao seu lado, mas não sabia quem era ela, nem nada sobre seus poderes místicos de arrancar a vida de um homem e tornar-se toda ela. Seus cabelos negros confundiam-se com o vento e a pedra, nenhum deles tomava posse, e seu corpo (estaria ela nua ou não?) era a própria espuma do oceano, nas ondas incessantes que digladiavam com o rochedo impenetrável. Na sua inocência havia sabedoria, pois não conseguia fixar o olhar nela, e mesmo com suas calças dobradas no meio das canelas e sua blusa brevemente molhada, de mangas arregaçadas e colete enraivecido pelos ares, era ele quem estava nu. Ele queria saber onde a espuma a tocava, ou por que seus olhos claros eram tão parecidos com o barulho das manhãs.

Irresistível.

Era um garoto ainda, nunca havia sentido o calor de uma mulher antes, ainda mais de uma daquelas, esfíngicas e belas. Havia crescido no interior da cidade grande, com muito medo do mundo externo para ter coragem de olhar pra além do seu próprio umbigo, cicatriz eterna do seu medo. Uma mulher que mal ele conseguia pronunciar o nome era Estrangeiro demais para seu coração frágil, cria do escuro de muitas noites sozinho olhando em vão para o teto, em busca de estrelas que nunca o alcançariam. Seu peito arfava, um leão gritava dentro dele, mas ele não conseguia olhar para ela.

Irreversível.

Por que ela não se movia, por que ela não fazia sequer um movimento? A quem os olhasse, pensariam que ela mal sabia da existência do garoto, ou que ele era somente um fantasma diante de tanta vida. Pois era isso que era Arwen, viva. E ainda imóvel, ela pulsava mais que mil fábricas e sua presença tremia mais que a marcha de 100 legiões romanas partindo para o combate contra os bárbaros. O garoto morto ao seu lado não parava de se mexer. Suas mãos se estenderam e pegaram umas conchas partidas pela discussão do mar com as rochas. Voltou a imaginar a água do mar batendo nos pelos daquela mulher.

Irresistível.

Fechou os olhos e apertou as conchas contra sua mão, a dor e as feridas pareciam trazê-lo de volta, de lugar algum para lugar nenhum. Sentiu raiva, sentiu o ímpeto de jogar as conchas longe, queria matá-las. Mas talvez nunca mais as fosse ver novamente, como poderia perdê-las, suas mínimas posses num mundo tão raivoso? Colocou-as nos bolsos, mas agora algo havia acontecido a ele. Resolveu olhar para o outro lado e correr o risco de enfrentar o olhar da musa. Olhou-a. Ela não virou, parecia hipnotizada pelo horizonte, não importava.

Inacessível.

Ele olhou-a bem, seu corpo, suas pernas, seus seios gentis, seus cabelos pretos, sua rocha, sua espuma, suas manhãs. Sentiu raiva de tudo isso, amaldiçoou-os. De repente se viu em pé, gritando com a moça impassível, era ela a culpada de toda sua amargura! Nem os céus, nem os infernos, nem ele deveriam suportam tamanho despautério! Para ele, ela devia ser tragada pelo mar, onde somente os corais pudessem sofrer com sua presença. Mas ela continuava lá, deitada, nua, mitologicamente linda.

Impassível.

Não sentiu mais raiva. Ele a amava. Não podia fazer nada quanto a isso, era todo amor. Beijou seus pés, chorou com suas mãos nas dela, encostou-se em seus seios despidos e pediu perdão, um perdão eterno da criança que peca. Ela nada fez. Era isso. Não havia mais saída, o único caminho era a morte, se jogaria no mar e lá, no pó do oceano, ele se livraria dela. Mas sabia que estava enganado, ela era absoluta. Arwen era o infinito. Não sabia mais o que fazer, haveria alguma saída para seu sofrimento?

Impossível.

Desesperado, jogou-se novamente nas pedras, e de lá resolveu nascer de novo. "Olá", ele disse, "você está aí?". "Enfim", ela respondeu ao virar a cabeça e encará-lo, "Enfim estou".




quarta-feira, 2 de abril de 2014

Abismo


O mais estranho era ver as pessoas gritando e batendo em tambores. Era como se estivessem felizes, mas que loucura. Levantou, pegou o cigarro e começou a caminhar, queria saber até onde ia chegar. Não queria mais estar sozinho naquele banco, mas cada passo deixava-o mais isolado. Se sentia feliz com isso. A medida em que ia andando ele buscava olhar os olhos das pessoas, mas todo mundo desviava o olhar. Ele sabia, estavam todos com medo, assim como ele tinha medo de tudo. Era essa a merda, ninguém sabia quem era, pra que viver essa vida e por quem lutar. 

Aqueles que tinham ideais e saiam por aí agitando suas bandeiras acabavam se perdendo, parecia que todo o grito caía no vazio - eles haviam ganhado, aqueles safados. Puta merda, ainda me disseram que a cerveja ia ficar mais cara, talvez não valesse mais a pena viver, mas segui caminhando, nunca se sabe onde pode chegar com as próprias pernas. O diabo era que ninguém olhava muito tempo pra mim quando eu encarava o pessoal. Deviam me achar louco e estavam certos.

Estava buscando algum abismo, alguma coisa pra poder mergulhar - será que alguém sabia o segredo? Eu não conseguia ver um palmo na minha frente e tudo parecia uma farsa. Eu entendo as pessoas, a gente aprende desde cedo a não pular de cabeça na piscina pra não ficar tetraplégico. Estava chegando perto de uma curva na calçada, o cigarro tinha acabado, pisei e senti aquela merda grudar na sola do meu sapato. Parei um pouco pra tentar me livrar daquilo e olhei em volta - ninguém estava olhando - resolvi cuspir no chão, na grama, óbvio. Não gostava de ninguém olhando pro meu cuspe, aqueles safados malucos queriam olhar meu cuspe e falar que ele era nojento, mas eu amava meu cuspe. Marquei muito território assim, sem ninguém saber.

Voltei a andar e agora estava mais tranquilo, afinal tinha ganhado uma nova praça, toda minha. Então veio aquela dor e eu precisava achar alguém que soubesse - o que tá rolando? Onde vendem as respostas? Me virei pro primeiro rabo de saia que eu vi e perguntei:

- Alo, moça, qual é o lance?
- Que?
- O lance, pô, quero saber a verdade.

Ela não sabia se o olhava perplexa ou se saia correndo. Era um sujeito esquisito.

- Então, você tem cara de quem sabe, conta aí, moça.
- Desculpa, meu senhor, mas o senhor...
- Tudo bem, você quer esconder o jogo.
- Esconder o jogo? Não, meu senhor, só quero dizer que...
- Ei, sem problemas.

Virei as costas e continuei andando, a mulher tentou me falar alguma coisa, parecia desesperada. Já sabia que não era a verdade. Era difícil de acreditar que tinha sido verdade, que homem louco. O melhor que podia fazer era deixar passar, mas tinha alguma coisa que não queria ir embora. Era um pensamento meio louco, mas... Ah, do que adianta? Provavelmente eu não sou a dona da tal Verdade que o moço meio maluco queria. Mas ele parecia tão certo de que eu ia falar alguma coisa... Ai, chega... não vou pensar nisso.
Opa, alguma coisa vibrou na minha bolsa. Oba, é a Flávia, ela quer encontrar e tomar um suco! Acho que vai ser uma boa encontrar com ela. Combinei um horário e lá fui eu.

Já estava cansada do trabalho quando cheguei no... nossa, como é o nome disso? Ah, o lugar que vende suco. A Flávia já estava na mesa, abracei ela, estava com saudades, ai, precisava comentar logo de uma vez:

- Amiga, olha que coisa maluca que me aconteceu. To lá voltando do almoço e aí chega um sujeito assim, meio estranho, caladão assim... sisudo, sei lá, meio esquisito mesmo o cara e fala comigo. Não era cantada nem nada, mas também ele não tava perguntando as horas. Só que o cara sei lá, não entendi o que ele disse, ou achei estranho, perguntei que que era e daqui a pouco ele tava me colocando mó pressão pra "falar a verdade". Falei, moço, não sei do que o senhor está falando, mas aí o cara já falou que eu tava escondendo o jogo, vê se pode! O cara chega assim na rua do nada e me trata como se eu fosse dona da verdade, fiquei me sentindo super esquisita o resto do dia, você acredita? 
- Mas que merda, devia estar era bêbado esse babaca!
- Não sei não, acho que ele era meio maluco mesmo, sabe? Tinha alguma coisa no olhar...

Era o abismo, pensei. Como poderia ser outra coisa? A mulher mesma disse que estava se sentindo esquisita, eu conhecia aquela sensação. Era o abismo. Agora ela estava saindo dele, perdendo ele... Elas já falavam sobre outra coisa qualquer quando eu passei pela loja de suco. O que não acontece quando se para para amarrar os cadarços, não é mesmo? Fiquei com aquele zunido na cabeça, fiquei pensando em como aquele homem seria e por que diabos ele teria enxergado a verdade naquela moça. Ela parecia normal como qualquer outra. Queria ter sido eu no lugar daquele homem, teria olhado de volta nos olhos dele e dito... dito o que? Talvez eu soubesse, se fosse eu, naquela hora, naquele lugar. 

Abismo. Eu nunca poderia saber se eu teria conseguido responder a pergunta do homem. Cheguei no carro, abri a porta rápido para escapar dos primeiros fugitivos do céu, acho que seria uma tempestade forte. Consegui entrar seco no carro, tinha vencido a mãe natureza mais uma vez. Fui dirigindo com calma, estava tocando um cd bom, dei sorte. A merda era ver uma galera esperando ônibus, andando na chuva que ficava cada vez mais agressiva. Sentia pena, mas também estava pouco me fodendo. Apesar da calma, o trajeto até em casa foi curto. Cheguei correndo na portaria e dei de cara com o meu vizinho de porta - gente boa o cara, mas não conhecia direito a peça.

- Opa, como vai?
- Vou bem, meu filho... Mas descobri que a cerveja vai aumentar.
- Pô, uma merda.
- Sim, não sei o que tá pegando. 
- Tá pegando fogo, isso sim.
- É, filho, acho que é isso.

O elevador parou, descemos os dois.

- Descobri hoje que as pessoas tem medo de olhar nos olhos das outras - acho que estão todos com medo. - É, o senhor tá certo.
- Você é um bom rapaz, que olha no olho. Isso é raro. Cuidado pra não bater no poste.

Girei a chave e entrei em casa. Bom garoto. Ele olhava no olho mesmo, parecia querer sair mergulhando por aí. Nem lembro a última vez que encontrei alguém assim, parece que as pessoas querem fugir, até a gente ir embora. Elas não querem que a gente vá com o filme queimado delas, todo mundo é perfeito hoje em dia, que diabos. Por isso que a cerveja fica mais cara. 

O paletó foi parar no encosto da poltrona do quarto, foi tirar o sapato e percebeu uma guimba de cigarro colada na sua sola, jurava que tinha soltado ela na grama hoje mais cedo, tinha até cuspido nela. Esse era o mistério da vida, ninguém estava certo. Foi até a janela e queimou mais um cigarro.

A fumaça saiu noite a fora.

Só ela não caia no abismo.