O mais estranho era ver as pessoas gritando e batendo em tambores. Era como se estivessem felizes, mas que loucura. Levantou, pegou o cigarro e começou a caminhar, queria saber até onde ia chegar. Não queria mais estar sozinho naquele banco, mas cada passo deixava-o mais isolado. Se sentia feliz com isso. A medida em que ia andando ele buscava olhar os olhos das pessoas, mas todo mundo desviava o olhar. Ele sabia, estavam todos com medo, assim como ele tinha medo de tudo. Era essa a merda, ninguém sabia quem era, pra que viver essa vida e por quem lutar.
Aqueles que tinham ideais e saiam por aí agitando suas bandeiras acabavam se perdendo, parecia que todo o grito caía no vazio - eles haviam ganhado, aqueles safados. Puta merda, ainda me disseram que a cerveja ia ficar mais cara, talvez não valesse mais a pena viver, mas segui caminhando, nunca se sabe onde pode chegar com as próprias pernas. O diabo era que ninguém olhava muito tempo pra mim quando eu encarava o pessoal. Deviam me achar louco e estavam certos.
Estava buscando algum abismo, alguma coisa pra poder mergulhar - será que alguém sabia o segredo? Eu não conseguia ver um palmo na minha frente e tudo parecia uma farsa. Eu entendo as pessoas, a gente aprende desde cedo a não pular de cabeça na piscina pra não ficar tetraplégico. Estava chegando perto de uma curva na calçada, o cigarro tinha acabado, pisei e senti aquela merda grudar na sola do meu sapato. Parei um pouco pra tentar me livrar daquilo e olhei em volta - ninguém estava olhando - resolvi cuspir no chão, na grama, óbvio. Não gostava de ninguém olhando pro meu cuspe, aqueles safados malucos queriam olhar meu cuspe e falar que ele era nojento, mas eu amava meu cuspe. Marquei muito território assim, sem ninguém saber.
Voltei a andar e agora estava mais tranquilo, afinal tinha ganhado uma nova praça, toda minha. Então veio aquela dor e eu precisava achar alguém que soubesse - o que tá rolando? Onde vendem as respostas? Me virei pro primeiro rabo de saia que eu vi e perguntei:
- Alo, moça, qual é o lance?
- Que?
- O lance, pô, quero saber a verdade.
Ela não sabia se o olhava perplexa ou se saia correndo. Era um sujeito esquisito.
- Então, você tem cara de quem sabe, conta aí, moça.
- Desculpa, meu senhor, mas o senhor...
- Tudo bem, você quer esconder o jogo.
- Esconder o jogo? Não, meu senhor, só quero dizer que...
- Ei, sem problemas.
Virei as costas e continuei andando, a mulher tentou me falar alguma coisa, parecia desesperada. Já sabia que não era a verdade. Era difícil de acreditar que tinha sido verdade, que homem louco. O melhor que podia fazer era deixar passar, mas tinha alguma coisa que não queria ir embora. Era um pensamento meio louco, mas... Ah, do que adianta? Provavelmente eu não sou a dona da tal Verdade que o moço meio maluco queria. Mas ele parecia tão certo de que eu ia falar alguma coisa... Ai, chega... não vou pensar nisso.
Opa, alguma coisa vibrou na minha bolsa. Oba, é a Flávia, ela quer encontrar e tomar um suco! Acho que vai ser uma boa encontrar com ela. Combinei um horário e lá fui eu.
Já estava cansada do trabalho quando cheguei no... nossa, como é o nome disso? Ah, o lugar que vende suco. A Flávia já estava na mesa, abracei ela, estava com saudades, ai, precisava comentar logo de uma vez:
- Amiga, olha que coisa maluca que me aconteceu. To lá voltando do almoço e aí chega um sujeito assim, meio estranho, caladão assim... sisudo, sei lá, meio esquisito mesmo o cara e fala comigo. Não era cantada nem nada, mas também ele não tava perguntando as horas. Só que o cara sei lá, não entendi o que ele disse, ou achei estranho, perguntei que que era e daqui a pouco ele tava me colocando mó pressão pra "falar a verdade". Falei, moço, não sei do que o senhor está falando, mas aí o cara já falou que eu tava escondendo o jogo, vê se pode! O cara chega assim na rua do nada e me trata como se eu fosse dona da verdade, fiquei me sentindo super esquisita o resto do dia, você acredita?
- Mas que merda, devia estar era bêbado esse babaca!
- Não sei não, acho que ele era meio maluco mesmo, sabe? Tinha alguma coisa no olhar...
Era o abismo, pensei. Como poderia ser outra coisa? A mulher mesma disse que estava se sentindo esquisita, eu conhecia aquela sensação. Era o abismo. Agora ela estava saindo dele, perdendo ele... Elas já falavam sobre outra coisa qualquer quando eu passei pela loja de suco. O que não acontece quando se para para amarrar os cadarços, não é mesmo? Fiquei com aquele zunido na cabeça, fiquei pensando em como aquele homem seria e por que diabos ele teria enxergado a verdade naquela moça. Ela parecia normal como qualquer outra. Queria ter sido eu no lugar daquele homem, teria olhado de volta nos olhos dele e dito... dito o que? Talvez eu soubesse, se fosse eu, naquela hora, naquele lugar.
Abismo. Eu nunca poderia saber se eu teria conseguido responder a pergunta do homem. Cheguei no carro, abri a porta rápido para escapar dos primeiros fugitivos do céu, acho que seria uma tempestade forte. Consegui entrar seco no carro, tinha vencido a mãe natureza mais uma vez. Fui dirigindo com calma, estava tocando um cd bom, dei sorte. A merda era ver uma galera esperando ônibus, andando na chuva que ficava cada vez mais agressiva. Sentia pena, mas também estava pouco me fodendo. Apesar da calma, o trajeto até em casa foi curto. Cheguei correndo na portaria e dei de cara com o meu vizinho de porta - gente boa o cara, mas não conhecia direito a peça.
- Opa, como vai?
- Vou bem, meu filho... Mas descobri que a cerveja vai aumentar.
- Pô, uma merda.
- Sim, não sei o que tá pegando.
- Tá pegando fogo, isso sim.
- É, filho, acho que é isso.
O elevador parou, descemos os dois.
- Descobri hoje que as pessoas tem medo de olhar nos olhos das outras - acho que estão todos com medo. - É, o senhor tá certo.
- Você é um bom rapaz, que olha no olho. Isso é raro. Cuidado pra não bater no poste.
Girei a chave e entrei em casa. Bom garoto. Ele olhava no olho mesmo, parecia querer sair mergulhando por aí. Nem lembro a última vez que encontrei alguém assim, parece que as pessoas querem fugir, até a gente ir embora. Elas não querem que a gente vá com o filme queimado delas, todo mundo é perfeito hoje em dia, que diabos. Por isso que a cerveja fica mais cara.
O paletó foi parar no encosto da poltrona do quarto, foi tirar o sapato e percebeu uma guimba de cigarro colada na sua sola, jurava que tinha soltado ela na grama hoje mais cedo, tinha até cuspido nela. Esse era o mistério da vida, ninguém estava certo. Foi até a janela e queimou mais um cigarro.
A fumaça saiu noite a fora.
Só ela não caia no abismo.