segunda-feira, 20 de outubro de 2014

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

95ºF


O céu amanhece cinza, um cinza medonho de um calor incalculável. A cidade vazia, era deserto. Um passo após o outro chegava a lugar algum, não tinha destino, o horizonte incerto.

Me disseram que estava pegando fogo, mas tudo era chama, não dei atenção. A medida em que o tempo escorria pelas minhas têmporas, percebi que ele evaporava. Sua partícula erguia-se ao céu e buscava a misericórdia de deus. Ele virou as costas para nós.

Só então vi que a chama se tornava fogo e meu corpo tencionava juntar-se ao vapor do tempo. Suplicava a deus, o deus do silêncio, almejava sua misericórdia - ao menos o céu deveria estar frio. Mas não subi como precisava, me liquefiz e ardi no chão tão quente quanto os óleos de feira.

Refleti os pássaros voando e as nuvens. De alguma forma os céus também estava em mim. Não tardei a secar e dali tudo se foi comigo. Só restou no chão a mancha de meu antigo corpo-lágrima e as pessoas seguiram seus caminhos, passando por cima de minha memória.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Virou Notícia

- Boa noite, meu bem!
- Boa noite.
- Então, como foi a reunião? O que seu chefe disse?
- "Em reunião extraordinária, chefe indica corte no corpo de funcionários da empresa".
- Meu deus! O que isso quer dizer?
- "Nesta terça-feira (14/10), chefe de empresa surpreende funcionários ao indicar possibilidade de cortes. Setores mais afetados pretendem organizar ação sindical contra a empresa".
- Que? Não entendi muito bem... Você entrou no sindicato?
- "Membros do sindicato planejam protesto contra chefe de multinacional - 'o que estão fazendo com a gente é crime'".
- Roberto, você está meio esquisito hoje. O que está acontecendo? Me explica direitinho o que aconteceu!
- "Ameaça de demissão gera estresse em trabalhadores."
- Roberto, estou falando sério, você está se sentindo bem, quer que eu ligue para um médico, psicólogo, alguém?
- "Familiares se preocupam com trabalhadores ameaçados pelo fantasma do desemprego nesta terça-feira (14/10)"
- Roberto, Roberto, presta atenção, olha pra mim, me responde, o que está acontecendo? O que seu chefe disse direitinho?
- "Estou tranquilo com a minha decisão, infelizmente a crise não nos permite outra saída, diz Erasmo, 56 anos, presidente de multinacional"
- ROBERTO! PARA COM ISSO! ME EXPLICA LOGO O QUE ACONTECEU!
- "Para saber tudo que anda acontecendo, se torne assinante hoje!"
- PUTA QUE PARIU, ROBERTO! Que PORRA é essa de assinante? Você está maluco?
- "Familiares denunciam histórico de condições insalubres no ambiente de trabalho, processo pode ser aberto contra a direção de multinacional"
- Eu desisto, Roberto. Eu desisto. Está impossível conversar com você.
- "Dificuldades nos relacionamentos? Envie 4004 para nosso número e conheça as pessoas mais interessantes da sua cidade!"
-... Roberto?
- "Show de Roberto Carlos cancelado gera indignação em fãs de Santa Catarina"
- Amor? - irrompe em lágrimas
- ...
- Amor? - se surpreende
- ...
- Amor? 
Dormiram em silêncio, de frente um pro outro.


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Saudações, sei que já nos vimos antes.


Pois bem, e não era que eu caminhava tranquilo, sob o sol do fim da manhã? Eis que me surge no horizonte, anunciado por uma breve lufada de vento (naquele momento já sabia, mas me fiz de desentendido) - o que poderia ser? O vulto se agigantava, era como ver os astros nascendo, soaring

Sim, sim, sim, quanto mais a imagem se formava mais eu suspeitava (o coração já batia mais forte muito antes, já tinha certeza) - afinal, o que era aquilo que se anunciava? O vulto crescia, surgia, era volúpia, folhas ao vento num rodamoinho pueril em outubro, aloof?

Mas não! O vulto se aproximava, chegava a passos largos e lentos e mistos de dança e desfile, veio o estalo quando reconheci seu caminhar (já sabia desde antes, senti o cheiro à distância) - e não era que você vinha até mim? Chegou, sorrindo, e não pude compreender mais nada do que se passava ali, o lugar era outro e agora só sei onde estás.

I've got you under my skin.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Vasos

Minhas metáforas se tornam mais densas.

É como estar aos poucos concretizando
meus vazios comunicantes.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Genesis 3:19

Haveria de ter, em mim, o que ao menos refreasse a poeira que me torno? 

Soube, outrora, tudo que seria dizer-te, mas as palavras sedimentaram em meu peito, grudadas ali como                                                                                              [as miríades, as eras venenosas dali não saem.

Antes fossem nós na garganta, desatáveis pela fumaça do cigarro. Antes fossem nós 
nós dois, nós mesmo, nós moscados.

Sirvo-me ao fim do molho, como toque de especiaria - serias meu corpo indispensável? Indivisível?

À ferro e fogo marco o sangue, órgão meu mais sólido, que daqui se eriça cada vez                                                                                                   [que teus lábios finos tocam meu pescoço

Meu olhos, botões pregados no pano, nada ferem daquilo que não vêem,
as lágrimas, bijuterias nascidas dos diamantes pêlos d'alma
na alva manhã refletem teus olhos de anjo.

quando vens?
quando fostes?
Nada.
Nada no perfume que exalam as narinas

da fonte
seja a folha,
do licor
seja pó

quando sedes, 
seja amante,
se deitar-te
sede a sós.

Muito é pouco para tanto corpo
e opus do solstício
é ir tornar-me
pó.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Musgo


O caminhar sôfrego não refletia seu estado de espírito. Estava bem. Assim como o suave dispensar do sentido não era indício do seu mal-estar: estava angustiado. Era impressionante poder ver o musgo crescendo nas cascas das árvores e até num pedaço de chão. Tocar o aveludado fungo verde era como fazer carinho numa fera - talvez o musgo crescesse em si mesmo, talvez ele fosse um musgo apenas esperando para eclodir como tal. Mas seu olhar apaixonado ao tapete verde natural persistia diante das incertezas da sua própria matéria.

O vento farfalhava em seu ouvido, lento, o frio acariciava o seu rosto e lhe fazia pensar naqueles bons momentos de candura junto dela. A marcha o levava adiante, sabendo que ia de encontro ao seu passado, qualquer dia desses. Por que a textura das coisas o fascinava tanto? Era sempre assim, estar parado nalgum canto era seguido de um constante investigar de corpos - qual era a sensação da parede, qual era a sensação da calça, qual era a sensação das plantas.

O grande problema era que ele nunca havia sentido a textura da fumaça - céus, como aquilo o indignava. Já havia tocado muita coisa, de mulheres à flores, de bichos à torres. Mas a maldita fumaça, diabo, essa sempre escapava. Ele sabia que tocar as coisas era estar vivo - afinal de contas: sinto, logo existo. A fumaça era sua morte.

Como quem precisa toda hora se lembrar de que está vivo, ele se apaixonou por aquilo que lhe dizia: morte. O que ele queria mesmo era ir com a fumaça, virar pó.

Olhou ao seu redor, sentiu vontade de espirrar.
Sentiu vontade.
É.
Estava vivo.

Sobre domingo à noite

Acho o máximo esses escritores de filme. Tantas idéias, sobre tantos assuntos. Depois ali de umas doses e uns cigarros e eles estão funcionando a pleno vapor, na calada da noite, descobrindo o sentido oculto da vida até aquele ponto final. Quem diabos escreve?

Lá estava eu, no parque, tomando uma cerveja e fumando um cigarro, no meio de algumas risadas e boa música. Ao primeiro sinal da escuridão, surge a criatura. Um tipo de seus 30 e poucos anos, sozinho, tomando cerveja no canudinho e infiltrando as rodas. As folhas que seus pés pisavam quebravam mais alto, ele se fazia notar, claro. Recitou um poema de merda, à pedido e autorização de ninguém - todos queriam continuar rindo, o cara estava ferrando todos os esquemas. Convenci ele a recitar o mesmo poema sobre o cemitério das pessoas que ele tanto amou para uma loira com um bambolê, mas ele deveria fazer rebolando. O cara realmente foi e então pude voltar às minhas risadas e à minha cerveja.

Não sei bem qual foi o sentido vital que quiseram me passar ali, mas não podia reclamar muito, a vida estava boa. O homem retorna, ainda em seus 30 e poucos anos, fiquei surpreso de que não tivesse envelhecido tanto assim. Perguntou sobre meus poemas, fiz questão de dizer que nunca tinha escrito nenhum poema, é tudo uma grande mentira suja. Ele ficou puto comigo por que eu não recitei nenhum dos meus poemas, ele arrancou a cerveja da minha mão e colocou na sua lata, tomando com o canudinho o suor do meu trabalho. Me disseram depois que ele queria uma batalha de poemas, algo como a versão candanga de 8 mile, o novo rap hipster da capital. 

Uma hora ele foi de vez, mas ainda podia vê-lo querendo voltar aos poucos. Fiquei assustado com a possibilidade de ter que ouvir mais um de seus terríveis poemas ou mais uma história da mina que o deixou por que ele era boêmio demais para se dar conta. 

Quase uma semana se passou e eu quase sangrei para conseguir escrever esses porcos parágrafos, por que na verdade eu mal tenho opinião sobre os assuntos importantes, imagina então sobre minha vida estapafúrdia... Só depois de noites em claro, medo de ser assassinado e quase um dia inteiro a base de Jazz que saem algumas linhas. 

Mas em um ponto ele estava certo, ele só surgiu depois que o sol se foi. O papel do escritor é preto como a noite, folhas em branco não fazem contraste de dia. A não ser em dias cinzentos...

terça-feira, 13 de maio de 2014

Cartão de Embarque

Os dentes da fera
voaram
com a ajuda dos
dedos

Mal se tocaram
seguiu-se 
viajem.

Clandestino
próprio

domingo, 27 de abril de 2014

O Rochedo e o Mar

Estava ali, o Rochedo. Sua firmeza tempestuosa era inabalável perante o Mar. O céu turvo marcava a batalha, em seu campo não havia descanso. Arwen estava lá, suntuosa e magnífica. Que mulher, que pecado. Não havia nada no mundo que não a quisesse, era simplesmente o puro olhar do desejo. Seu corpo branco se marcava contra a rocha cinza, enquanto ela suavemente olhava para o horizonte, cabelo revoando aos ventos. Entre as potências, entre o mar e a rocha, ela era a única vitória possível. Perto do seu rosto impetuoso, seu nariz fino e seus lábios macios, só encontrava-se as marcas do divino, como aquela de nascença no alto de sua perna direita, por trás.

Irresistível.

Contudo, ele era um rapaz acabrunhado, não sabia que direção seguir. Ele estava lá, ao seu lado, mas não sabia quem era ela, nem nada sobre seus poderes místicos de arrancar a vida de um homem e tornar-se toda ela. Seus cabelos negros confundiam-se com o vento e a pedra, nenhum deles tomava posse, e seu corpo (estaria ela nua ou não?) era a própria espuma do oceano, nas ondas incessantes que digladiavam com o rochedo impenetrável. Na sua inocência havia sabedoria, pois não conseguia fixar o olhar nela, e mesmo com suas calças dobradas no meio das canelas e sua blusa brevemente molhada, de mangas arregaçadas e colete enraivecido pelos ares, era ele quem estava nu. Ele queria saber onde a espuma a tocava, ou por que seus olhos claros eram tão parecidos com o barulho das manhãs.

Irresistível.

Era um garoto ainda, nunca havia sentido o calor de uma mulher antes, ainda mais de uma daquelas, esfíngicas e belas. Havia crescido no interior da cidade grande, com muito medo do mundo externo para ter coragem de olhar pra além do seu próprio umbigo, cicatriz eterna do seu medo. Uma mulher que mal ele conseguia pronunciar o nome era Estrangeiro demais para seu coração frágil, cria do escuro de muitas noites sozinho olhando em vão para o teto, em busca de estrelas que nunca o alcançariam. Seu peito arfava, um leão gritava dentro dele, mas ele não conseguia olhar para ela.

Irreversível.

Por que ela não se movia, por que ela não fazia sequer um movimento? A quem os olhasse, pensariam que ela mal sabia da existência do garoto, ou que ele era somente um fantasma diante de tanta vida. Pois era isso que era Arwen, viva. E ainda imóvel, ela pulsava mais que mil fábricas e sua presença tremia mais que a marcha de 100 legiões romanas partindo para o combate contra os bárbaros. O garoto morto ao seu lado não parava de se mexer. Suas mãos se estenderam e pegaram umas conchas partidas pela discussão do mar com as rochas. Voltou a imaginar a água do mar batendo nos pelos daquela mulher.

Irresistível.

Fechou os olhos e apertou as conchas contra sua mão, a dor e as feridas pareciam trazê-lo de volta, de lugar algum para lugar nenhum. Sentiu raiva, sentiu o ímpeto de jogar as conchas longe, queria matá-las. Mas talvez nunca mais as fosse ver novamente, como poderia perdê-las, suas mínimas posses num mundo tão raivoso? Colocou-as nos bolsos, mas agora algo havia acontecido a ele. Resolveu olhar para o outro lado e correr o risco de enfrentar o olhar da musa. Olhou-a. Ela não virou, parecia hipnotizada pelo horizonte, não importava.

Inacessível.

Ele olhou-a bem, seu corpo, suas pernas, seus seios gentis, seus cabelos pretos, sua rocha, sua espuma, suas manhãs. Sentiu raiva de tudo isso, amaldiçoou-os. De repente se viu em pé, gritando com a moça impassível, era ela a culpada de toda sua amargura! Nem os céus, nem os infernos, nem ele deveriam suportam tamanho despautério! Para ele, ela devia ser tragada pelo mar, onde somente os corais pudessem sofrer com sua presença. Mas ela continuava lá, deitada, nua, mitologicamente linda.

Impassível.

Não sentiu mais raiva. Ele a amava. Não podia fazer nada quanto a isso, era todo amor. Beijou seus pés, chorou com suas mãos nas dela, encostou-se em seus seios despidos e pediu perdão, um perdão eterno da criança que peca. Ela nada fez. Era isso. Não havia mais saída, o único caminho era a morte, se jogaria no mar e lá, no pó do oceano, ele se livraria dela. Mas sabia que estava enganado, ela era absoluta. Arwen era o infinito. Não sabia mais o que fazer, haveria alguma saída para seu sofrimento?

Impossível.

Desesperado, jogou-se novamente nas pedras, e de lá resolveu nascer de novo. "Olá", ele disse, "você está aí?". "Enfim", ela respondeu ao virar a cabeça e encará-lo, "Enfim estou".




quarta-feira, 2 de abril de 2014

Abismo


O mais estranho era ver as pessoas gritando e batendo em tambores. Era como se estivessem felizes, mas que loucura. Levantou, pegou o cigarro e começou a caminhar, queria saber até onde ia chegar. Não queria mais estar sozinho naquele banco, mas cada passo deixava-o mais isolado. Se sentia feliz com isso. A medida em que ia andando ele buscava olhar os olhos das pessoas, mas todo mundo desviava o olhar. Ele sabia, estavam todos com medo, assim como ele tinha medo de tudo. Era essa a merda, ninguém sabia quem era, pra que viver essa vida e por quem lutar. 

Aqueles que tinham ideais e saiam por aí agitando suas bandeiras acabavam se perdendo, parecia que todo o grito caía no vazio - eles haviam ganhado, aqueles safados. Puta merda, ainda me disseram que a cerveja ia ficar mais cara, talvez não valesse mais a pena viver, mas segui caminhando, nunca se sabe onde pode chegar com as próprias pernas. O diabo era que ninguém olhava muito tempo pra mim quando eu encarava o pessoal. Deviam me achar louco e estavam certos.

Estava buscando algum abismo, alguma coisa pra poder mergulhar - será que alguém sabia o segredo? Eu não conseguia ver um palmo na minha frente e tudo parecia uma farsa. Eu entendo as pessoas, a gente aprende desde cedo a não pular de cabeça na piscina pra não ficar tetraplégico. Estava chegando perto de uma curva na calçada, o cigarro tinha acabado, pisei e senti aquela merda grudar na sola do meu sapato. Parei um pouco pra tentar me livrar daquilo e olhei em volta - ninguém estava olhando - resolvi cuspir no chão, na grama, óbvio. Não gostava de ninguém olhando pro meu cuspe, aqueles safados malucos queriam olhar meu cuspe e falar que ele era nojento, mas eu amava meu cuspe. Marquei muito território assim, sem ninguém saber.

Voltei a andar e agora estava mais tranquilo, afinal tinha ganhado uma nova praça, toda minha. Então veio aquela dor e eu precisava achar alguém que soubesse - o que tá rolando? Onde vendem as respostas? Me virei pro primeiro rabo de saia que eu vi e perguntei:

- Alo, moça, qual é o lance?
- Que?
- O lance, pô, quero saber a verdade.

Ela não sabia se o olhava perplexa ou se saia correndo. Era um sujeito esquisito.

- Então, você tem cara de quem sabe, conta aí, moça.
- Desculpa, meu senhor, mas o senhor...
- Tudo bem, você quer esconder o jogo.
- Esconder o jogo? Não, meu senhor, só quero dizer que...
- Ei, sem problemas.

Virei as costas e continuei andando, a mulher tentou me falar alguma coisa, parecia desesperada. Já sabia que não era a verdade. Era difícil de acreditar que tinha sido verdade, que homem louco. O melhor que podia fazer era deixar passar, mas tinha alguma coisa que não queria ir embora. Era um pensamento meio louco, mas... Ah, do que adianta? Provavelmente eu não sou a dona da tal Verdade que o moço meio maluco queria. Mas ele parecia tão certo de que eu ia falar alguma coisa... Ai, chega... não vou pensar nisso.
Opa, alguma coisa vibrou na minha bolsa. Oba, é a Flávia, ela quer encontrar e tomar um suco! Acho que vai ser uma boa encontrar com ela. Combinei um horário e lá fui eu.

Já estava cansada do trabalho quando cheguei no... nossa, como é o nome disso? Ah, o lugar que vende suco. A Flávia já estava na mesa, abracei ela, estava com saudades, ai, precisava comentar logo de uma vez:

- Amiga, olha que coisa maluca que me aconteceu. To lá voltando do almoço e aí chega um sujeito assim, meio estranho, caladão assim... sisudo, sei lá, meio esquisito mesmo o cara e fala comigo. Não era cantada nem nada, mas também ele não tava perguntando as horas. Só que o cara sei lá, não entendi o que ele disse, ou achei estranho, perguntei que que era e daqui a pouco ele tava me colocando mó pressão pra "falar a verdade". Falei, moço, não sei do que o senhor está falando, mas aí o cara já falou que eu tava escondendo o jogo, vê se pode! O cara chega assim na rua do nada e me trata como se eu fosse dona da verdade, fiquei me sentindo super esquisita o resto do dia, você acredita? 
- Mas que merda, devia estar era bêbado esse babaca!
- Não sei não, acho que ele era meio maluco mesmo, sabe? Tinha alguma coisa no olhar...

Era o abismo, pensei. Como poderia ser outra coisa? A mulher mesma disse que estava se sentindo esquisita, eu conhecia aquela sensação. Era o abismo. Agora ela estava saindo dele, perdendo ele... Elas já falavam sobre outra coisa qualquer quando eu passei pela loja de suco. O que não acontece quando se para para amarrar os cadarços, não é mesmo? Fiquei com aquele zunido na cabeça, fiquei pensando em como aquele homem seria e por que diabos ele teria enxergado a verdade naquela moça. Ela parecia normal como qualquer outra. Queria ter sido eu no lugar daquele homem, teria olhado de volta nos olhos dele e dito... dito o que? Talvez eu soubesse, se fosse eu, naquela hora, naquele lugar. 

Abismo. Eu nunca poderia saber se eu teria conseguido responder a pergunta do homem. Cheguei no carro, abri a porta rápido para escapar dos primeiros fugitivos do céu, acho que seria uma tempestade forte. Consegui entrar seco no carro, tinha vencido a mãe natureza mais uma vez. Fui dirigindo com calma, estava tocando um cd bom, dei sorte. A merda era ver uma galera esperando ônibus, andando na chuva que ficava cada vez mais agressiva. Sentia pena, mas também estava pouco me fodendo. Apesar da calma, o trajeto até em casa foi curto. Cheguei correndo na portaria e dei de cara com o meu vizinho de porta - gente boa o cara, mas não conhecia direito a peça.

- Opa, como vai?
- Vou bem, meu filho... Mas descobri que a cerveja vai aumentar.
- Pô, uma merda.
- Sim, não sei o que tá pegando. 
- Tá pegando fogo, isso sim.
- É, filho, acho que é isso.

O elevador parou, descemos os dois.

- Descobri hoje que as pessoas tem medo de olhar nos olhos das outras - acho que estão todos com medo. - É, o senhor tá certo.
- Você é um bom rapaz, que olha no olho. Isso é raro. Cuidado pra não bater no poste.

Girei a chave e entrei em casa. Bom garoto. Ele olhava no olho mesmo, parecia querer sair mergulhando por aí. Nem lembro a última vez que encontrei alguém assim, parece que as pessoas querem fugir, até a gente ir embora. Elas não querem que a gente vá com o filme queimado delas, todo mundo é perfeito hoje em dia, que diabos. Por isso que a cerveja fica mais cara. 

O paletó foi parar no encosto da poltrona do quarto, foi tirar o sapato e percebeu uma guimba de cigarro colada na sua sola, jurava que tinha soltado ela na grama hoje mais cedo, tinha até cuspido nela. Esse era o mistério da vida, ninguém estava certo. Foi até a janela e queimou mais um cigarro.

A fumaça saiu noite a fora.

Só ela não caia no abismo. 


terça-feira, 25 de março de 2014

Ao Infinito na fila do Pão



Ainda hoje
       vivo aquele
ontem.
                                                      s.
estou no exato                              u
instante                                      é
                 em que ascendi aos c

foi seu beijo
                   e
                      seu sorriso
                                      e
                                        o morno sol 
                                                            e
                                                                 a brisa leve 
que despedaçaram
o
tempo
                                                       e
                                                           declararam lei amar
                                                                                          se
                                                                                                ao

                           nosso

d           e           s           e          j          o



quarta-feira, 19 de março de 2014

Açougue

Depois da morte vem o
açougue

A faca corta as
folhas secas
da minha carne
em túmulo

a Relva se mistura
com o escalpo
e os pedaços
se constroem no
lixo

minhas mãos cheiram
a Morte

o banho das suas doces palavras
me levam correnteza
a baixo,
à uma terra
que nunca foi de ninguém

minhas unhas crescem de
fora pra dentro,
as entranhas a céu aberto
são a minha contribuição
histórica
ao mundo que me abandonou,
antes mesmo que meu
corpo esfriasse


quinta-feira, 13 de março de 2014

Depois da chuva

O cheiro pungente
da pobreza.
O saco de lixo.
O chorume abafado
pelo calor (des)humano
do Ônibus.

A colônia de
ostentação.
O sangue azul
de corante.
Nobreza irreal.

O sexo imaginado.
A ausência sentida.
A angústia morre
no mar de palavras.

O mesmo lugar
mas agora estou
só.
Um dia você vai voltar.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Sujo

As gotas de chuva vieram dar seu parecer sobre o assunto.
Fui obrigado a concordar, 
afinal elas tem um smooth talk
que é difícil de resistir. 

Penso se a terra sente 
as gotas da chuva como
minha pele sente 
as gotas do chuveiro. 
Talvez seja tolice 
pensar que o chão precise de um banho assim como eu. 
Ele não é tão sujo.
O que está encardido é
a alma.

O fundo dos meus olhos é preto, no espelho.
Onde está o brilho?
Atrás da barba,
atrás do cabelo,
atrás da covardia.

é puro desespero.
é desassossego.
é tudo que me falta:

amar o medo.

Sem hora

Foi como uma bomba.
Uh.
A blitzkrieg mandou lembranças,
devastadora foi sua passagem.

A tesoura rasga minha carne.
audacioso digo:
não demora.
não demora.
não tem hora,
chove agora,
vem e chora.
ora, ora,
ora, bolas.

te peguei no pulo do gato.
mas segredo:
prefiro os ratos.
a escória.
tão boba nossa história.
que glória!

e a chuva?
a chuva demora
me olha

me molha
agora.
senhora,
me devora?

sem hora.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O Natimorto

Para meu irmão

o corredor de chão
marrom, gasto
mas limpo.

o banco do hospital de frente
à uma porta dupla,
com um pequeno espaço para se observar
o corredor
adentro.

Meu Pai com olhar preocupado,
barba por fazer,
já havia ali o fio branco?

a notícia do nascimento da
morte.
a visita ao quarto,
os panos brancos
a mãe branca,
morta também
apenas em seu olhar.

o berço de plástico com a figura,
pálida,
em eterno silêncio.

o choro inaudível misturado com os sons
da madrugada,
da noite calada,
das estrelas frias e indiferentes.

esta é a minha forma de estar do
seu lado.
a cada dia,
a cada minuto,
desde que você nunca veio.
você nunca mais se
foi.

lembra das lágrimas que eu dediquei à você?
hoje não choro mais,
só atingem lugar aqueles
enormes vazios que se encontram no peito,
no âmago de um seio
que nunca deu de mamar,
não daquela vez,
não para aquela criança.

o filho que escolheu se libertar cedo demais,
o irmão natimorto,
as memórias falsas,
o ríspido
aborto.

sábado, 1 de fevereiro de 2014

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Ela limpou o armário antes de sair de casa

"Eu vou embora"
"Ah é?"
"E eu vou com as suas
meias"

Ela limpou o armário
antes de sair de casa.
Levou as
meias.

Me deixou aqui,
inteiramente sozinho,
no infinito
na sorte.

As luzes da cidade.
Reflexo.
O vidro embaçado de um carro que
não se move.
Esvaziado de mim.

Ela limpou o armário
antes de sair de casa.
Levou minhas
meias
e nada mais.

sábado, 25 de janeiro de 2014

O2

Olha lá!
é o desfile dos detalhes
passando.

Serei eu
um sopro ridículo
a estar lhes
olhando?

por que não me olham de volta?
serei eu um entalhe?
uma marca amorfa de
solda?
um coelho que nunca saiu da cartola?

repare.
o desfile passou.
e foi onde tanto pensei
que tudo acabou.

deus
oh, deus

e quando foi que tudo
começou?






O chamado da mancha.

A barra pisca.
Esperando minhas palavras.
É o incômodo dizer:
vamos lá. escreva. sinta.

Olho para a barra piscando,
a folha em branco já está manchada.
meus olhos já estão manchados.
minha vida já está manchada.

escreva isso em prosa.
escreva isso em poesia.
foda-se.
enfia sua norma no cu.

o oceano não é limpo.
o ar não é limpo.
o céu tem nuvens.
no chão há bitucas
de cigarro.

no meio tempo,
a gente ama.

e a barra chama.



quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

(Platão)

quem imagina as coisas
é Platão
esse lance
de tirar o pé do chão

ainda bem que isso
não é comigo não
mas por favor alguém avise
o danado do meu coração

sábado, 18 de janeiro de 2014

Angústia afins do Tempo


I

Angústia.
Atento.
Há tempos...


II

Ora, quem diria
o tempo ainda
é curto.

A pressa de viver
é o desejo de deixar
em luto.

III

Pedi uma porção de
angústia:
Dupla, pra viagem.

Pra esperar o
ponto,
bebi uma dose
de estiagem.

Entrava eu
na mais tenra
das idades
quando a angústia ficou pronta
e o tempo

era só miragem...





sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Quero que me hobbes deste tédio.

Talvez aquele carinha
estivesse quase certo
"O homem é o lobo
do homem"

Afinal, de tantos
socos da natureza
o que mais dói é
o beijo que some.

É, esse cara bem que
estava meio errado.
"O homem é o lobo
do homem"...

Já que de lindas
manhãs ensolaradas
não há melhor coisa
que acordar do seu lado.

Seu sorriso que é o meu estado,
acho que vou levi(a)tando até
te ver.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Contém 1 grama


mal vestido
maltrapilho
no mesmo ponto
em que sempre estive
despido.

o ponto onde
escorreu
sangrou
e quase se vomitou
pela primeira vez.

ali haviam
memórias
o chão e a
grama.

tirei meus chinelos.
dei o passo.
novas lágrimas caíram,
por que sem.
por que sim

é a melhor sensação do mundo pisar na 
grama.
na sua grama.
na nossa grama.

na verde grama,
onde se apoiaram
toneladas,
aves e
incêndios.

ela me contou
que estava com saudades
dos seus pés.

tentei acalmá-la,
mas ainda assim ela
chorou.

informou-me:

"pegaria carona no
efeito borboleta.
chegaria lá de
furacão,
me parece descabido,
mas é a medida
da paixão"

deixei que ela fosse.
a distância estava lá,
maior a cada momento,
diminuindo com o tempo.
enquanto, aqui,
bom...

aqui há vento.



terça-feira, 14 de janeiro de 2014

O sufrágio do tempo

O sufrágio do tempo
não aceita plebiscito
me parece muito injusto
que ele decida por tudo
se tornar meio lento.

Enquanto aguento
                                        (ó céus, aguento?)
devo perguntar:
Há tempo?
Ainda há tempo?

É claro.
É lento.
Mas enfim, por ti,

aguento.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Cobogós

Para meu avô.
É isso que me resta?
Onde está o seu bigode?
Te vi nalgumas fotos
Te vi nas rugas da minha
                                  [avó]
Vi sua antiga faca,
te vi nas lacunas dos
                                  [cobogós]

É isso que me infesta,
isso me explode:
as fotos
as rugas
a faca
e o vazio dos
                                  [cobogós]

É isso que me resta,
o seu, agora meu, bigode.
E os mortos
as fugas
e a marca de limo nos
                                  [cobogós]

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A partir da

tresloucado
deslocado
transubstanciado

amado
soldado
saudades

maldade
que venha a idade.

Descontento

Será que essa coisa de
com e sem
com/sem
algum dia entra em
consenso?

com, sem, sou?

é consenso: não sei quem sou
não sou quem
sei.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Intenções

Tropeçarei em
passos
pretéritos.

O fumante quer
contatar os céus
via fumaça.

O bêbado tenta ler
o futuro nas
manchas de vômito.

O poeta pensa deixar
o seu vazio
entre os versos.

Tropecei em
avessos
futuros.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Ao sol nascente.

Perigoso como a vida.
Inevitável como a morte.
Indizível esta ferida.
Pecaminoso esse corte.

Assentamentos de
afeto-
sedimentam-se.
Sentimento-te.
Continente-me?

a sós,
a dois.
em antes.
mais depois [?]

Intermitente.